00:00
00:00
Por Michel Aires de Souza
Em seu texto de 1920, “O mal-estar na civilização”,
Freud chegou a conclusão que o indivíduo não pode ser feliz na
civilização moderna. Mesmo com todo progresso técnico e cientifico o
homem não se tornou mais feliz. Ao refletir sobre o propósito da vida,
ele diagnosticou que o objetivo da civilização não é a felicidade, mas é
a renúncia a ela. A vida do indivíduo é a busca constante pela
realização da satisfação do prazer, mas esta satisfação é impossível de
realizar num mundo carente e escasso de recursos. O mundo é hostil as
necessidades humanas, para tudo que é bom e prazeroso exigem-se
trabalhos penosos e sofrimentos.
A manutenção da civilização exige que os individuos trabalhem. Mas os
homens não são amantes do trabalho e os argumentos não tem valia nenhuma
contra suas paixões. Assim, é somente através da repressão social que os indivíduos são obrigados a trabalhar.
Na teoria da cultura freudiana, a sexualidade é a pedra
fundamental na manutenção e reprodução da civilização. A civilização só
pode existir porque os impulsos sexuais são canalizados para o trabalho,
gerando todos os bens materiais e intelectuais da civilização. “A
civilização está obedecendo às leis da necessidade econômica, visto que
uma grande quantidade de energia psíquica que ela utiliza para seus
próprios fins tem de ser retirada da sexualidade” (FREUD, 1969, p. 125).
Em conseqüência disso, Freud
atribuiu as doenças psíquicas de sua época a grande repressão que a
civilização exerce sobre os impulsos sexuais. Essa insatisfação foi
exigida num grau muito superior que o necessário. O processo
civilizatório é marcado pela renúncia e pelo sentimento de insatisfação
que os homens experimentam vivendo em sociedade. O resultado disso é o
mal-estar na civilização. Este mal-estar é produzido pelo conflito
irreconciliável entre as exigências pulsionais e as restrições da
civilização.
Hoje em pleno século XXI podemos dizer que nossa época melhorou muito. A
vida tornou-se um pouco mais digna; as taxas de crescimento da
natalidade e o aumento da expectativa de vida demonstram a melhoria. A
saúde e o saneamento básico já atingem a grande maioria da população
mundial. O analfabetismo já não é um problema grave dos países
subdesenvolvidos. Há uma maior tolerância à liberdade sexual. A
população de hoje usufrui mais e melhor dos bens culturais. No entanto, o
mal estar na civilização não desapareceu. Em nossa época, o mal-estar
assume novas formas, ela estaria mais associada às condições econômicas e
sociais que os indivíduos experimentam no mundo moderno. Nós, filhos da
modernidade, somos espectadores de uma experiência que melhor se
conceitua como fome, miséria, barbárie, guerras, desemprego,
instabilidade econômica e social. Todos esses fatores geram a
insegurança social no indivíduo e conseqüentemente são responsáveis
pelas doenças psíquicas de nossa época. No atual estágio de nossa
civilização não sabemos se nossas perspectivas serão realizadas. O mundo
se torna cada vez mais racionalizado e o trabalho se torna cada vez
mais dispensável. A racionalidade técnica cria cada vez mais domínio de
objetos e instrumentos que acabam por mecanizar todas as estruturas
sociais. O homem entendido como homo faber*
está perdendo sua importância. Nós vivemos uma época de desemprego
estrutural (desemprego causado pela mecanização das estruturas sócias).
Esse desemprego atinge todos os países e torna inexorável o fim da
sociedade do trabalho. O homem tem se tornado uma peça inútil na
estrutura dos meios de produção. A possibilidade de uma mecanização
completa em todas as esferas da vida social é uma possibilidade
histórica. Esse fato deve abalar o narcisismo do homem. O indivíduo se
vê sem ocupação e sem perspectivas. Ele perde sua identidade na medida
em que perde sua ocupação. Ele torna-se um indivíduo à margem, mais um
na massa de desempregados. É este mal-estar na civilização, que surge da
preocupação, do medo e da insegurança que procuramos diagnosticar.
Na época de Freud, o puritanismo, os tabus e a enorme rigidez contra os
impulsos sexuais poderiam dar razões para se afirmar que o mal-estar
surgisse das restrições à vida sexual. Contudo, vivemos em uma época
onde a liberdade sexual é tolerada e até mesmo incentivada. A
sexualidade perdeu sua importância como fator preponderante nas crises
de ansiedade e de neuroses. No atual estágio do progresso humano, as
restrições à sexualidade tornaram-se desnecessárias. Com o
desenvolvimento técnico e cientifico, o uso das pulsões sexuais na
criação dos bens culturais perdeu sua importância. O homem já não
precisa mais sacrificar sua sexualidade em nome do progresso. Hoje a
racionalidade atingiu todas as esferas da vida social. O progresso
técnico atingiu tal amplitude que já não é mais necessário desviar as
pulsões sexuais para o trabalho competitivo. Em um futuro próximo, não
será mais preciso o uso das forças humanas na produção e reprodução dos
bens culturais. As pulsões estariam livres da repressão imposta pelo
trabalho social. Dessa forma, o mal-estar do indivíduo na civilização já
não surge mais da insatisfação libidinal. Já não é mais de uma tensão
física, sexual, que causa a ansiedade, mas é uma tensão psíquica,
causada pela preocupação, pelo medo e pela insegurança causada por
condições econômicas e sociais. Os estímulos externos causam todo tipo
desajuste psíquico. É comum a experiência da melancolia, da depressão,
do desânimo, do desinteresse pela vida, da baixa auto-estima e da
sensação de inutilidade. As doenças que eram menos comuns na época de
Freud se tornaram grandes problemas para psicólogos e psiquiatras, são
os traumas de roubos e de seqüestros, a síndrome do pânico, a compulsão
de consumo, a síndrome de perseguição, a misantropia e a depressão.
Todas essas doenças são acompanhadas de crises de ansiedade. São doenças
típicas de nossa época e que estão associadas ao mal-estar na
civilização.
Segundo Mezan, “na época de Freud a sociedade era mais rigidamente
patriarcal e com valores claramente identificáveis, nossa época
tornou-se mais relativista e fragmentária. Os ritmos de mudança na
sociedade contemporânea se tornaram alucinantes, deixando os indivíduos
desorientados e pressionados pelas exigências do dia-a-dia”. (MEZAN,
2000, p. 208).
Se na época de Freud os valores eram bem estabelecidos, em nossa época
não há mais valores ou rumos pré-estabelecidos a serem seguidos. A
família como formadora da individualidade se fragmentou. Os laços
familiares se tornaram frágeis por causa das exigências do mundo
exterior. A família não constitui mais um núcleo fixo de produção da
subjetividade. Todos os indivíduos devem trabalhar se querem viver. A
criança não tem mais o convívio do pai. O pai deixou de ser um parâmetro
ou modelo a ser seguido. Não há mais parâmetros ou padrões definidos A
Tv, a escola e as instituições sociais ensinam os modelos, as formas de
ser, de pensar, de agir e de valorizar. O indivíduo moderno está
desamparado e desorientado. Seu modelo é o patrão, o playboy rico, o
traficante do bairro ou o artista de novela. O distanciamento da
autoridade paterna causou ao indivíduo o desnorteamento e a insegurança
frente ao mundo exterior.
O mal-estar na civilização é a condição existencial do homem
moderno, é o destino que todos temos de compartilhar. O simples fato de o
indivíduo viver no mundo contemporâneo já é o requisito para se viver
ansioso. A sociedade industrial, a competitividade, o consumo
desenfreado, o desemprego, a violência, a dinâmica das transformações
sociais e dos valores, a adaptação do indivíduo às exigências da vida
são os principais fatores que produzem o mal-estar na civilização.
Bibliografia
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, Edições Standard, Tomo XXI ,1969.
MEZAN, Renato . O Mal-Estar na Modernidade. Revista Veja, São Paulo, p. 68 – 70, 26 dez. 2000.